O Fardo do Saco

Nem por cortesia auditiva, fugidia a conversas alheias, teria sido capaz de ignorar aquelas vozes que chegavam de soslaio.

À frente de um pequeno portão verde, cercado por sebes altas de côr idêntica, um homem com cerca de setenta anos, trigueiro, cabelo branco, risco ao lado, costas ligeiramente arqueadas pelo tempo, retirava produtos da mala de um carro.

Parecia recolher os objectos por categoria, de forma propositada, gradual, como se a vida lhe tivesse ensinado a colocar ordem nas coisas ou as coisas por ordem: primeiro as mais leves, depois as mais pesadas; primeiro os objectos pequenos, por último dois obesos sacos de serapilheira.

Enquanto o fazia, relatava em aparente solilóquio o episódio ocorrido momentos antes: o funcionário da loja onde adquiriu o material não o ajudou a transportar a mercadoria, não obstante a dificuldade que manifestou com o peso dos dois sacos.

Do outro lado do tabique, a confirmar que afinal este não falava sozinho, escondido até então pela cerca espinhosa de folhas pequenas, densas, ovais e brilhantes, uma voz masculina de juventude denunciada retorquiu: - É o problema da sociedade de hoje em dia, gozam com as pessoas!

O quase septagenário, a voz a ressudar experiência - mais que transpiração da testa que agora limpava à mão, por arrasto do pulso ao polegar -, e alguma resignação escondida: - É com esta que tens que viver... - esboçando um riso monossilábico e curto, num soluço.

Como um balão de conversa de banda desenhada em branco, com reticências ao centro, assim ficou o rapaz. Mudo, hesitante, suspenso.

Com a mão que limpara a testa, o velhote riscou a suor um traço no bolso das calças de bombazine - o mesmo arrasto do pulso ao polegar -, virou-se para mala do carro e descarregou o saco que faltava.

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