O Lugar

Recebe-me um braço alcatroado, estendido, como a acompanhar uma vénia, por entre a cortina nevoeiro de Janeiro que conduz à boca de cena. Convida-me assim a entrar por um corredor perfumado pelas flores de globoso algodão amarelo das acácias-mimosa, e pétalas rosas e brancas das flores de cerejeira de Março - colorido do Oriente, prenúncio da serenidade que sempre encontro.

Acolhe-me, ao fundo, a instalação que dá vida e luz ao confessionário onde me sento: banco de ripas hirtas, madeira envernizada, dispostas em ondulante assento e encosto para o corpo. Está frio em Abril - queima a velha o carro e o carril, ensina-me meu pai -, e anuncia-se a Lua num final de tarde já luminoso onde posso folhear umas páginas do livro que me acompanha.


Maio está aí, vou ter com ele a uma esplanada onde bebo um café Delta, curto. Leio mais um capítulo e preparo-me para voltar antes que as chaminés espalhem uma teia perfumada de lenha queimada para afastar os últimos frios - e uma tábua que sobrou, ainda em Maio se queimou, acrescenta meu pai.

Subo agora por umas escadas que tantas vezes contei e nunca lembro o número. Tudo está verde e a florir em Junho, e à hora de jantar de Julho, um filtro natural de sol poente transforma todas essas cores em nostalgia.

Umas flores cor de rosa - desconheço o nome -, em forma de boca grafonola ou funil para ouvir melhor, apontadas para a rua, espreitam por cima do muro do Convento - ao qual atirávamos pedras para partir os vidros lá espetados e arreliar as Irmãs. Perscrutam-me os passos que reconhecem nas memórias de rebeldias pueris - já citadas.

Volto ao banco de ripas, agora aquecido pelo Agosto mais quente de que há registo. Todos os anos me parece o mais quente dos que a memória alcança. Excepto o do ano que vem, que será mais fresco - e então voltarei cá para redigir este acrescento.

Como uma avó com saudade - qualquer ausência é mais sentida para quem o tempo é precioso -, o meu lugar aguarda-me com uma doçura serena que só é capaz quem sabe esperar. Quero aprender essa arte da espera, mas depressa, que Setembro está perto para me tirar mais um ano ao muito que há para fazer - que saberá sempre a pouco.

Aguardo pela noite nostálgica de Dezembro. Fria, um raio de poeira gélida traça um percurso de luz: dos holofotes aos metais de uma estrutura, onde se desfazem num fumegar frágil e efémero.

De volta, pelo mesmo corredor, agora atapetado de folhas moles, já se vislumbram maduros os dióspiros que, abandonados na árvore, parecem decorações natalícias esquecidas nas tardes lavadas de Janeiro.

É este o meu lugar. E pudesse eu arrancar um dedo, enterrá-lo em terra fértil, com vista para a minha paisagem, e dele nascer uma árvore ebúrnea cujo tronco e ramos fossem meus ossos, a folhagem pele, a caruma cabelo, e meus olhos os frutos que apreciassem perpétuamente o céu e o horizonte, o nascer e o pôr do sol, e ser lugar para quem se procura a si mesmo.

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