Tempo e Memória

A perspectiva com que observamos um fenómeno é diferente consoante a distância a que dele nos encontramos. Em assuntos da memória, a distância conta-se, mede-se e sente-se em unidades de tempo pouco linear, raramente proporcional.

Relembro os meus anos de ensino secundário com um suspiro saudoso. Esses anos não estão muito distantes - mais o parece, como tudo que se apresenta inalcançável e tão mudado que não o concebíamos possível.

Então, os dias tinham mais tempo e podíamos observar o presente tornar-se passado. O mundo não era olhado pelo ecrã de um telemóvel, mas a pontualidade era uma qualidade natural. A Internet doméstica era tão lenta que podíamos torrar uma fatia de pão enquanto o ruidoso Modem 56Kb abria o Yahoo. Não existiam Facebook e Youtube, e nenhuma destas inexistências cerceava capacidade de comunicação e entretenimento. Au contraire!

Os tempos livres eram uma miríade de aventuras que apraz contar, em espontâneo, quando a memória as recupera, com palavras diferentes e novas perspectivas de imaginação porque não ficaram gravadas em exposição cíclica nas redes socais.

Todos os dias eram uma oportunidade de estar com os amigos na rua, nos jardins e parques públicos, ou em casa, e não era preciso procurar disponibilidade na agenda ou conciliar tempos livres com um sem fim de antecedência. A rotina diária era uma grata fatalidade que nos juntava.

Alguém nos alertava para a armadilha que é ser adulto e nós - a inocência de quem acredita que o tempo é uma conquista sucessiva que não admite a perda - desconfiávamos de qualquer ratoeira no tanto de antemão com que nos desvendavam essa armadilha! Porque queriam tanta demora no passar dos dias, se a nossa pressa era a carta de condução?

Que aproveitássemos, mas que estudássemos - era o que nos diziam -, senão ainda haveríamos de deitar as mãos às orelhas - não para ficarmos mudos aos conselhos, como então, mas para nos penitenciarmos: ao jeito de as esticar em repreensão, e com retroactivos!

Que quando fossemos adultos não poderíamos gritar ao mundo os nossos verdadeiros sonhos sem nos contraporem que o essencial é o dinheirinho para a vidinha, para o dia-a-dia, que fazer o que se gosta vem depois.

Que não poderíamos voltar a correr à chuva, só para nos encharcamos, sem sermos olhados de soslaio, imaginando-nos com uma camisa de forças, empurrados para uma sala que cega de branco, de um Hospital Psiquiátrico;

Que aproveitássemos, que aproveitássemos... que aproveitássemos agora - que era então-, enquanto podíamos e devíamos.

E eu que nunca me neguei a seguir conselhos que viessem em proveito próprio!
E nós a partir, de paragem em paragem, a acenar aos que vão e aos que chegam, sem nos lembrarmos de acenar ao nosso reflexo no vidro do autocarro, espelho em tardes escuras de Inverno, que também nós ficamos e partimos em cada viagem: entregues à esperança, de saudade na bagagem. Nem sempre foi ou será fácil, é o que sabemos ou aprenderemos, mas há que fazer por engrandecer a alma, como me ensinou a primeira lição do Secundário, gravada a ferro na parede da Escola Emídio de Navarro: "Tudo vale a pena se a alma não é pequena".


Não há garantias. Poderemos não conquistar tudo ou até nada do que desejámos, ainda que façamos tudo tão bem quanto nos é possível. Mas o maior arrependimento não superará a certeza ingrata de termos esvaziado a alma sem tentar.

Sei que já o disse: a perspectiva com que observamos um fenómeno é diferente consoante a distância a que dele nos encontramos. Em assuntos da memória, a distância conta-se, mede-se e sente-se em unidades de tempo. É no presente que se constroem as memórias com as quais poderemos voltar no tempo, um dia, num futuro qualquer.

E voltaremos, e bem acompanhados, se cultivarmos verdadeiras amizades, aventuras inesquecíveis, corrermos atrás dos sonhos como se perseguidos por uma régua apontada à palma da mão ou à bochecha do rabo, se valorizarmos o que cada dia conquistamos - mundialmente reconhecidos ou a contemplar a Lua, no anonimato do logradouro lá de casa, com a pessoa por quem estamos apaixonados.

Se o preço a pagar for esta saudade e esta nostalgia, pague-se de bom grado, e continue-se a fazer por aumentar a conta no futuro pelas boas memórias que se preservam do presente.

Porque, afinal, tudo o que somos se resume a isso: tempo e memória.

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